segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A Ética Profissional está ao alcance todos


Na década de 90  um gestor de RH trabalhava numa empresa de porte médio com 180 funcionários já incluindo as duas filiais pelas quais ele era o responsável. Época difícil do governo Collor de Mello, poupança confiscada, demissões em massa por todo o país, ninguém contratava, acordos coletivos praticamente paralisados, negociações salariais travadas, sindicatos patronais e de empregados não chegavam a um acordo, tudo terminava em dissídio coletivo.

No caso dessa empresa, não obstante os funcionários trabalharem desmotivados pela crise geral que dominava o país, a saúde financeira daquela empresa estava caminhando razoavelmente bem. Tratava-se de uma instituição de ensino particular de cursos técnicos e cursos livres. Foi então que o proprietário da empresa chamou o responsável pelo RH e decidiu que daria uma antecipação salarial de 10% para todos os funcionários, uma vez que o acordo coletivo estava pendente na justiça sem prazo para ser julgado, haja vista a quantidade de acordos na fila para serem julgados na época.

Detalhe importante: a antecipação dos 10% seria descontada quando o dissídio coletivo fosse homologado. E todos os funcionários, sem exceção estavam cientes disso, inclusive, a antecipação foi anotada na CTPS  de cada um.

Quatro meses se passaram e finalmente foi julgado o dissídio coletivo da categoria a qual aquela empresa pertencia. E a primeiríssima cláusula daquele dissídio tirou o chão de alguns empregadores, inclusive o daquela empresa. Pois, a primeira cláusula cravou:

“É expressamente proibido descontar qualquer antecipação salarial concedida a todos os funcionários dessa categoria profissional por conta deste acordo coletivo”.

Sem dúvida alguma foi um duro golpe no estômago de cada empregador daquela atividade de ensino particular que deliberadamente concedeu antecipação salarial para seus colaboradores. O sindicato jogou pesado e isso explica porque não houve acordo entre o sindicato patronal e dos empregados e que acabou em dissídio. No entanto, dura lex, sed lex, e todos sabem que acordos e dissídios coletivos têm força de lei, devem ser cumpridos e respeitados, pois recorrer da decisão no TST não seria viável naquele momento.

Então o gestor de RH dessa empresa foi chamado para uma reunião com o proprietário. A situação era tensa e o proprietário estava decidido a descontar os 10% de antecipação salarial na próxima folha de pagamento, ainda que o dissídio coletivo vetasse o desconto. O gestor de RH expôs a impossibilidade legal desse desconto, o risco futuro de ações trabalhistas, os riscos da deflagração de greve, pois a atividade dessa empresa implicava em dois sindicatos, o de professores e dos auxiliares em administração escolar, sindicatos fortíssimos e por demais atuantes.

A ordem do proprietário era para descontar a antecipação, custasse o que custasse. Porém, o gestor de RH manteve-se firme em não proceder o desconto. Ele sabia que se o fizesse, seria ele quem poderia futuramente responder por negligência profissional e comprometer seriamente a sua carreira. Além disso, pesavam muito mais seus valores, princípios e sobretudo, a conduta ética profissional, diretriz absoluta de sua profissão.

Foi então que o proprietário decidiu pela cartada final, o que piorou a situação mais ainda. Chamou o gestor de RH e fez a ele uma derradeira, audaciosa e atraente proposta que consistia no seguinte: um aumento salarial exclusivo de 20% já naquela folha de pagamento, mais um bonificação “por fora” naquele mês e isenção do desconto da antecipação somente de seu salário. Porém, a antecipação salarial concedida seria descontada de todos os outros funcionários, exceto do gestor de RH.

A resposta do gestor de RH foi imediata, sem pestanejar: um sonoro NÃO! O dono da empresa ainda insistiu para que ele pelo menos pensasse na proposta. Mas o gestor de RH foi enfático, a Ética Profissional, seus valores e princípios falaram mais alto, razão pela qual ele declinou da proposta e ainda colocou o cargo a disposição. Claro, ele foi demitido também naquele momento e ficou feliz com isso, pois naquele noite colocou a cabeça no travesseiro e dormiu tranquilo, ciente de que agiu certo e sem uma gota de arrependimento.

O proprietário da empresa encontrou quem fizesse o "serviço" sujo (sim, sujo, não há outra palavra para definir essa situação), gente dessa estirpe sempre aparece aos montes. Óbvio que tempos depois a empresa teve sérios problemas com a justiça, mas isso já é outra história. Mas, por onde anda aquele gestor de RH? Bom, está bem aqui, é exatamente esse que vos escreve. E acredito entusiasticamente que você, meu colega de profissão que está lendo esse artigo, se acontecesse com você agiria da mesma maneira e faria a mesma coisa em meu lugar. Estou certo disso, não?

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Pensão Alimentícia: desconto em folha viola o contrato de trabalho e a garantia da proteção salarial




A pensão alimentícia não tem nenhuma base legal tanto na esfera trabalhista quanto na previdenciária. Ela é requerida pela via judicial, conforme Lei nº 5.478/1968 e resulta na decisão do juiz da Vara da Família. Ela é concedida para quem assumir a guarda dos filhos, seja o homem ou a mulher. Em alguns casos ela também pode ser concedida para ex-cônjuge em situação precária de subsistência, mesmo que não haja filhos. O presente artigo não tem o objetivo de entrar no mérito da pensão alimentícia, mas do desconto dessa obrigação em folha de pagamento, uma decisão das mais violentas do estado e que fere de morte o contrato de trabalho.


Já escrevi em diversos artigos sobre a natureza milenar e sinalagmática do contrato de trabalho, no qual ocorre um vínculo de reciprocidade voluntária de prestação e contraprestação entre duas partes. Qualquer elemento fora dessa condição voluntária que possa envolver o contrato de trabalho se traduz em artificialidade, como por exemplo, os próprios “direitos” trabalhistas (que não são efeitos do pacto laboral), desconto previdenciário, imposto de renda e, sobretudo a pensão alimentícia. Nenhum desses elementos subtrativos conta com a anuência do trabalhador para retenção no seu salário.


Se levarmos em conta o princípio da intangibilidade salarial que é um dos princípios do direito do trabalho, inclusive tema da Convenção 95-Proteção do Salário - da Organização Internacional do Trabalho-OIT em seus artigos 8, 9 e 10; a tão queridinha Consolidação das Leis do Trabalho-CLT em seu artigo 462 e a questão da impenhorabilidade salarial sacramentada no artigo 833 do Novo Código do Processo Civil, qualquer ordem para desconto no salário do trabalhador configura uma violência sem precedentes. Vamos por partes:


Nem mesmo a Convenção 95 da OIT abre concessão para desconto de pensão alimentícia no salário. É importante citar os artigos 8, 9 e 10 da Convenção em comento:


Art. 8 — 1. Descontos em salários não serão autorizados, senão sob condições e limites prescritos pela legislação nacional ou fixados por convenção coletiva ou sentença arbitral.


2. Os trabalhadores deverão ser informados, de maneira que a autoridade competente considerar mais apropriada, sobre condições e limites nos quais tais descontos puderem ser efetuados.


Art. 9 — Fica proibido qualquer desconto dos salários cuja finalidade seja assegurar pagamento direto ou indireto do trabalhador ao empregador, a representante deste ou a qualquer intermediário (tal como um agente encarregado de recrutar a mão-de-obra), com o fim de obter ou conservar um emprego.


Art. 10 — 1. O salário não poderá ser objeto de penhora ou cessão, a não ser segundo as modalidades e nos limites prescritos pela legislação nacional.


2. O salário deve ser protegido contra a penhora ou a cessão, na medida julgada necessária para assegurar a manutenção do trabalhador e de sua família.


Artigo 462 da CLT: Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei (grifo meu) ou de contrato coletivo. Salvo dispositivos de lei, hein? Mas que redação matreira essa, não?


Impenhorabilidade Salarial: Artigo 833 – Novo Código do Processo Civil:


IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o;


E o que o diz o § 2º? Vejamos:


§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.


Que conclusão podemos chegar depois disso? Que o salário não é tão intangível assim, tampouco impenhorável, pois a lei concede exceções, vejamos: pensão alimentícia, imposto de renda (no meu entender, salário não é renda e imposto é roubo), contribuição compulsória previdenciária e o que mais o estado decidir colocar suas garras. Fica claro que a intangibilidade e a proteção salarial não são absolutas, mas relativas. O estado se utiliza da pessoa jurídica do empregador para proceder com o desconto da pensão alimentícia diretamente na folha de pagamento.


Ora, por que o estado teve que colocar o empregador no meio desse fogo cruzado entre credor e devedor de pensão alimentícia? Nessa hora o contrato de trabalho pode ser violado? O que o empregador tem a ver com a cizânia matrimonial de seus empregados? Separação ou divórcio são assuntos de foro íntimo, o estado jamais poderia determinar que uma empresa na qual um dos envolvidos presta serviços proceda com o desconto de pensão alimentícia ou de qualquer outra natureza do salário de seus empregados. Descontar pensão alimentícia na folha de pagamento é uma das maiores aberrações jurídicas do Brasil. Entra em rota de colisão com todas as garantias de intangibilidade e proteção salarial.


Além disso, quando o empregado se desliga da empresa, é a própria empresa que terá o trabalho de encaminhar ofício com os devidos anexos da TRTC ao juiz relatando a demissão do funcionário para não ter mais que proceder com o desconto da pensão alimentícia na folha de pagamento. E na falta dessas informações a empresa sofrerá severa punição criminal de acordo com o artigo 22 da Lei 5.478/68.


O artigo 912/2016 do Novo Código de Processo Civil trouxe uma nova redação para o desconto da pensão alimentícia em folha e que na prática é possível optar por outro meio de pagamento. O artigo 733 do antigo CPC que tratava da questão era mais taxativo. Comparemos os dois:


Art. 912/2016. Quando o executado for funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa ou empregado sujeito à legislação do trabalho, o exequente poderá requerer (grifo meu) o desconto em folha de pagamento da importância da prestação alimentícia.


Art. 733/1973. Quando o devedor for funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa, bem como empregado sujeito à legislação do trabalho, o juiz mandará descontar (grifo meu) em folha de pagamento a importância da prestação alimentícia.


Vimos então que a atual determinação para desconto em folha é uma opção do exequente, ou seja, não é a única via possível nem mesmo obrigatória, pois existem outras maneiras de fixar o valor da pensão sem intervenção na folha de pagamento. Sabemos que atualmente um mês de pensão em atraso já é possível pedir a prisão do devedor (artigo 528 § 3º NCPC) e a negativação de seu nome junto aos serviços de proteção de crédito (artigo 517 § 1º do NCPC). É até possível a penhora de bens e bloqueio do saldo bancário no caso de não ocorrer o pagamento voluntário da obrigação.


Portanto, entendo que o desconto da pensão alimentícia em folha de pagamento é antiético e ilegítimo, viola o pacto laboral e só seria admissível mediante autorização expressa do funcionário junto ao RH da empresa. Assim sendo, palavras como intangibilidade e proteção salarial têm apenas efeito retórico, porque uma lei aqui outra ali podem dizer que não, que não é bem assim, há exceções e tal como dois e dois são cinco. São palavras que embelezam discursos de sindicalistas empedernidos, são floreios que apenas impressionam nos compêndios trabalhistas, são palavras que o próprio estado as atropela passando por cima de leis que ele mesmo criou.


Organização, Gerenciamento de Tempo e Produtividade

Matriz de Eisenhower Não existem mágicas, truques, macetes ou segredos, o que existem sim são métodos, técnicas e ferramentas bem estudadas ...