domingo, 25 de abril de 2021

Contrato de Trabalho CLT (Artigo 442) é Contrato de Adesão, uma armadilha para o trabalhador




No primeiro dia de trabalho, o funcionário passa pelo departamento de pessoal para assinar o seu contrato de trabalho que já está devidamente pronto. Por acaso algum chefe de pessoal já presenciou o novato questionar alguma cláusula desse contrato? Comigo nunca aconteceu, desde os cargos operacionais até os mais altos cargos de gerência executiva, nunca ninguém me disse: “olha, eu não vou assinar porque não concordo com essa ou com aquela cláusula”. Então, sejam todos bem vindos ao Contrato de Adesão!


O Contrato de Adesão é todo aquele que tem como premissa, assina aí ou a porta da rua é a serventia de casa. Quem não concordar com as cláusulas e não quiser assinar, outra pessoa vai assinar bem depressa e sorrindo. Ou também podemos definir assim: aceita ou não tem o emprego, simples assim. Vejamos a sua origem:


O Contrato de Adesão surgiu na França no ano de 1855 pelas penas do doutrinador jurídico Raymond Saleilles. Trata-se simplesmente de um contrato unilateral com cláusulas pré-dispostas e que o aderente não tem poderes de argumentar, discutir ou questionar cada cláusula desse contrato. É pegar ou largar.


Muitos doutrinadores entusiastas desse tipo de contrato alegam agilidade e praticidade em não se perder tempo na elaboração das cláusulas no fechamento de qualquer tipo de negócio. A grande desvantagem é a possibilidade da disposição de cláusulas abusivas com enorme prejuízo para o aderente que não participou da elaboração desse contrato. O que a doutrina considera como cláusulas abusivas são as cláusulas vexatórias, onerosas, opressivas entre outras expressões.


Vemos esse tipo de contrato nas operações de empréstimos, locação de imóveis, seguradoras, convênios de saúde dos mais diversos segmentos, etc. Quando surgiu não tinha como objetivo as relações de trabalho e sim oferecer agilidade nas relações de consumo. A sua figura no setor trabalhista no Brasil só passou a ser utilizada após a promulgação dessa ferramenta de tortura ao trabalhador chamada CLT. A redação obscura dos artigos pertinentes ao contrato de trabalho deixou larga margem para que esse tipo de contrato de adesão viesse a ser adotado na prática. E assim tem sido feito desde então.


Pois bem, a saudosa professora e magistrada, Alice Monteiro de Barros em seu livro “Curso de Direito do Trabalho”, no capitulo sobre o contrato de trabalho, analisa sabiamente a questão. Vejamos: 


“Para Cesarino Júnior, o contrato de trabalho é do tipo de adesão, isto é, o empregado adere sem discutir o esquema do contrato individual, já prefixado em parte pela lei, pela convenção coletiva e pelo regulamento da empresa. Cotrin Neto e Arnaldo Süssekind também veem no contrato de trabalho fortes características de adesão”. “Aderimos ao mesmo posicionamento. O contrato de trabalho é do tipo de adesão".


“Lembre-se que à luz do art. 423 do Código Civil vigente, quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar interpretação mais favorável ao aderente. Em se tratando de aplicação subsidiária ao Direito do Trabalho, o aderente é o empregado”.


Esse tipo de contrato de adesão obviamente abre a possibilidade de dispor cláusulas abusivas as quais o novo funcionário nada pode fazer e nem questionar, mesmo porque é raríssimo encontrarmos pessoas que entendem minimamente de questões ou teorias contratuais. Muitos supervisores de RH não possuem o domínio técnico do assunto, é muito raro algum profissional do setor abordar essa questão. Darei aqui apenas dois exemplos de cláusulas abusivas que encontro por aí nos contratos de trabalho:


“Em caso de dano causado pelo EMPEGADO, fica a empregadora autorizada a efetivar o desconto da importância correspondente ao prejuízo, o qual fará com fundamento no § 1º do art. 462 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, já que essa possibilidade fica expressamente prevista em contrato.”


Obriga-se também o EMPREGADO a prestar serviços de horas extraordinárias, sempre que lhe for determinado pela EMPREGADORA na forma prevista em lei.” 


Eu já escrevi diversos artigos abordando as cláusulas abusivas no contrato de trabalho. Quando presto assessoria para uma empresa, os primeiros documentos que analiso são justamente todos os contratos de trabalho, e quando vejo cláusulas abusivas como as que citei acima eu oriento no sentido para que os novos contratos firmados não disponham esse tipo de cláusula.


Tem-se a impressão que cláusulas abusivas dessa natureza são dispostas propositalmente pelos empregadores malvadões só para ferrar com os funcionários. Não é bem assim. Muitas empresas há décadas e automaticamente elaboram o contrato de trabalho dessa mesma forma simplesmente porque a maioria sempre assim o fez e ninguém nunca reclamou. É como se o RH funcionasse no piloto automático. Também já escrevi um artigo sobre isso. No entanto, é óbio que esse tipo de contrato favorece totalmente o empregador, sendo que alguns usam em abundância de cláusulas abusivas.


O contrato de adesão é totalmente inadequado para as relações de trabalho, ele não surgiu para essa finalidade e sim para as relações de consumo. Trata-se de uma armadilha contra o empregado, um monstrengo jurídico, um Frankstein venenoso que a CLT criou para os trabalhadores. A boa notícia é que existem antídotos contra esse veneno, a saber: A pejotização é uma boa alternativa, bem como o trabalho de freelancer. Outra solução seria a utilização do contrato de prestação de serviços disposto no artigo 494 do Código Civil no qual os dois lados, contratante e contratado discutiriam de forma paritária as cláusulas que lhe são mais vantajosas. Ato continuo, desaparecem as figuras de empregado/empregador e não existirá mais uma relação de subordinação mas de equilíbrio bilateral.


Pelo menos, nas relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor proíbe cláusulas abusivas em seu artigo 51 § 4:


“É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes”.


Bem, e nas relações de trabalho, o que o empregado pode fazer para se livrar dessas cláusulas abusivas? Acionar a empresa através de um advogado para neutralizá-las ainda que ele esteja prestando serviços nessa empresa? Denunciar para quem uma vez que esse tipo de contrato é considerado legal? As alternativas eu já sugeri acima ou seja, estão fora da CLT. As cláusulas abusivas são apenas o efeito de uma enfermidade que atende pelo nome de contrato de adesão, um produto 100% CLT. Então, por enquanto, novato, assina aí, ou...
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MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Contrato de Adesão.São Paulo:Editora Atlas
2002

MONTEIRO DE BARROS, Alice. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2012

domingo, 18 de abril de 2021

Você já tem o seu Diário de Bordo (Logbook)?



Para quem transita com desenvoltura pelo mundo coaching, este termo, Diário de Bordo é bastante familiar, pois trata-se de uma poderosa ferramenta, entre as muitas utilizadas pelos coaches e também pelos coachees. Entretanto, qualquer pessoa poderá desfrutar dos benefícios que um Diário de Bordo também chamado de Logbook pode proporcionar no dia a dia a tal ponto de nunca mais a pessoa passar sem ele em razão da sua eficácia.


Quem está por dentro do ambiente coaching, sabe das infinitas ferramentas mais manjadas e utilizadas pelos coaches tais como, Roda da Vida, Shazan, Análise SWORT, Metas Smart, 6Ws, Cine Coaching entre tantas outras. E o Diário de Bordo é uma delas a qual considero uma das mais importantes no que se pode chamar de ressignificação de metas e objetivos.


O Diário de Bordo foi inspirado nos diários de bordo marítimos das embarcações. É nele que os comandantes anotam as ocorrências diárias e o que poderá ser feito no dia seguinte para melhorar a condução da navegação. Com duas perguntas simples ou básicas a ser respondidas, o principal objetivo é encontrar coisa boas em meio ao caos e focar no autoconhecimento. Então, todo final do dia, devemos responder as seguintes perguntas:


- Por que o meu dia valeu a pena?


- O que devo fazer de diferente amanhã para o meu dia ser melhor do que o de hoje?


No entanto, podemos ir bem mais adiante do que isso. Podemos usar e abusar desse logbook para registramos ideias, pensamentos, listar cenas que nos chamaram a atenção, colar figuras, desenhar pictogramas e o que mais acharmos de interessante. Os benefícios que um logbook nos traz são comprovadamente documentados e infinitos. Só para citar alguns entre tantos outros:


- Aumento da criatividade e produtividade.

- Aumento da autoestima.

- Aumento da percepção e atenção.

- Redução do estresse através do processo catártico de escrever.

- Melhora a capacidade de comunicação.

- Ajuda na memorização.

- Ajuda no desenvolvimento de ideias complexas.

- Registro de nossos erros e acertos, etc. 


Como escreveu em seu blog o escritor Austin Kleon, um adepto de logbooks, autor do Best-seller “Roube Como Um Artista”, “logbooks são as evidências de nossos dias”. Os benefícios do ato de escrever são fartamente comprovados e até merece um artigo a parte que escreverei em breve.


A lista de conhecidos personagens na história em todos os seus segmentos que se utilizaram de um logbook inseparável durante suas vidas é infinita: Leonardo da Vinci, Henry David Thoreau, Andy Warhol, Ralph Waldo Emerson, Virginia Woolf, Isaac Newton. Abraham Lincoln, Winston Churchill, Franz Kafka, Tony Robbins, Frida Kahlo, Marie Curie, Kurt Cobain, enfim, a lista é infinita.


Um diário de bordo ou logbook não se confunde com um planner (agenda)  pois este registra os compromissos e obrigações de planejamento pessoal, profissional, financeiro, etc. No logbook, você tem a possibilidade de se recriar a si próprio, você escreve para você e não para os outros, uma espécie de auto coach de si próprio e com certeza vai encontrar alguma coisa boa ou positiva no meio do caos. Um logbook vai fazer a diferença na sua vida.


E como diz Austin Kleon em seu blog, tão importante como escrever um logbook, revisitar de tempo em tempo o que foi registrado é uma experiência ímpar e surpreendente, pois é o momento de constatarmos como evoluímos como pessoa e sim, como a nossa vida mudou desde então. Em seu livro, "Roube Como Um Artista" (que recomendo fortemente a sua leitura) há um capítulo dedicado à motivação de se escrever um logbook.


Infelizmente não é um hábito que o brasileiro está acostumado, exceto escritores, pesquisadores, coaches e repórteres que sempre anotam as suas observações e experiências. No entanto, com a farta divulgação nas redes sociais, as pessoas de qualquer segmento e profissão adotarão esse excelente hábito paulatinamente.


Diário de Bordo, Logbook, Daily Journal ou Bullet Journal, a nomenclatura não importa. Também não há um modelo específico a ser seguido, cada um elabora o seu método como se sentir melhor, mas para quem quer se iniciar basta digitar no google ou no youtube "starting my daily journal" e pronto, há mil formas de fazê-lo das maneiras as mais divertidas possíveis. Pode ser um Moleskine, um Midori, ou mesmo um simples caderno espiral.


Mas, ao invés de um caderno pode ser utilizado um aplicativo de smartphone ou mesmo criar um blog?  Olha, até pode mas é claro que não é a mesma coisa, o efeito não será o mesmo. Isto porque, o ato de escrever manualmente é diferente do ato de digitar, são atividades que são registradas em hemisférios diferentes de nosso cérebro. O ato de digitar é registrado como pixels, imagens e se apaga com mais facilidade ao contrário da escrita manual que nunca mais se esquece. O saudoso professor Pierluigi Piazzi escreveu brilhantemente sobre isso, inclusive há muitas palestras dele youtube falando sobre a enorme diferença entre escrever e digitar.


Normalmente, tira-se dez minutos logo pela manhã ou no fim da noite para fazer registrar as anotações ou mesmo durante o dia, isso fica a critério de cada um, não há uma regra a ser seguida, a regra é não ter regra e seguir a  linha freestyle. Como diz o escritor Tony Robbins, “se você não tem dez minutos, você não tem uma vida”.


Com certeza no final do dia de hoje escreverei em meu logbook o porquê que meu dia valeu a pena. Sim, valeu a pena por eu ter escrito esse artigo incentivando e motivando as pessoas a adquirirem esse excelente, divertido e produtivo hábito de possuir um logbook.


domingo, 11 de abril de 2021

Como um chefe de pessoal evitou que a empresa fosse autuada pela fiscalização



Cada situação que ocorre no ambiente de RH que até Deus duvida. Nos encontros de profissionais dessa área, trocamos histórias, experiências, lamentos; debochamos e fazemos escárnio de certos fiscais ridículos e supervisores idiotas que acham que humilhar subordinados é ser empregado eficiente. Uma dessas pitorescas histórias é sobre uma situação extrema pela qual passou um chefe de pessoal ao atender uma fiscal da Previdência Social. A situação ocorreu num ano incerto numa empresa que talvez nem mais exista. Então vamos lá:

Uma funcionária demitida da filial estabelecida em outra cidade ficou magoadinha e denunciou (alcaguete para mim é a pior espécie de ser humano) injustamente a empresa para a Previdência Social, alegando que a empresa não recolhia os valores retidos de INSS. Era mentira! E lá foi uma fiscal desse indigitado órgão público. Foi atendida pela gerente e listou uma lista infinita de documentos. Aquela groselha de sempre, guias de recolhimentos dos últimos cinco anos, recibo de férias, registro de empregados e bla bla bla, concedendo um prazo de dez dias para que os documentos fossem apresentados.


Os documentos solicitados estavam arquivados na matriz. Quase tudo foi encontrado, menos dois importantes itens que, se não apresentados a empresa seria autuada em pesada multa. Não que não existissem, alguém os arquivou em pastas erradas. O dia marcado do retorno da fiscal chegou e nada dos documentos que estavam faltando. O chefe de pessoal pegou o que tinha e foi para a filial assim mesmo. O horário marcado era às 14 horas.


Pelo caminho, ele foi pensando qual desculpa daria à fiscal: extravio? pedir mais um tempo para localizar os documentos? Não, desculpa alguma ia adiantar, pois a fiscal tinha um grau de parentesco com a delatora e estava babando para tascar uma multa na empresa. Leitor voraz que era, lembrou-se de um fato que leu num livro numa situação na qual o personagem central passou por interrogatório terrível e usou uma estratégia para se sair bem. Voilà! O chefe de pessoal ia arriscar a fazer o mesmo.


Ao chegar ao destino, ele nem almoçou, foi direito para a filial e expôs detalhadamente o seu plano heurístico para a gerente. Ele teria que contar com ela para o plano dar certo. Poderia não dar, mas era isso ou multa. A gerente achou que não daria certo, mesmo assim concordou em ajudar.


A fiscal chegou pontualmente às 14 horas. Ela e o chefe de pessoal carregando aquela caixa de documentos foram para uma sala reservada. Ela começa a examinar a documentação. Clima tenso naturalmente, a fiscal era de pouca conversa e nada amigável. Fazia muito calor e justamente naquela sala não havia ar condicionado e o ambiente era meio escuro e pouco ventilado.


O chefe de pessoal então começa a se abanar, depois enxuga o suor com lenço sistematicamente. Começa a ofegar e retira a gravata que estava usando. A fiscal já estava meio cismada e perguntou a ele se estava passando bem. Ele nada respondeu, fixou seus olhos bem abertos encarando a fiscal. Ela se afastou, ele então se joga da cadeira para traz que fez um estrondo ensurdecedor e vai ao chão. A fiscal chama por socorro. Foi tudo muito rápido, a gerente (que já sabia da armação) adentrou e foi ao socorro do chefe de pessoal estatelado ao chão desmaiado. Em menos de cinco minutos a ambulância encostava na porta da empresa.


Ele foi carregado numa maca para a ambulância. Uma funcionária da empresa o acompanhou no trajeto até o pronto socorro. Lá chegando, foi levado diretamente para a emergência. A funcionária disse às enfermeiras que ele passou por um mau súbito. Mediram-lhe a pressão. Uma enfermeira preparou uma injeção, cujo líquido era amarelo. Quando ela chegou e tomou-lhe o braço para aplicação, ele segurou no braço dela e perguntou: “o que você vai aplicar?” A enfermeira respondeu, “glicose”. Ele respondeu, “manda ver”.


Deu certo, a fiscal suspendeu a fiscalização estabelecendo mais um prazo de 10 dias. Os documentos foram encontrados e dessa vez a contadora da empresa foi no lugar do chefe de pessoal. Não houve nenhuma autuação.


O chefe de pessoal, fora o galo na cabeça que ganhou ao se jogar ao chão e uma injeção de glicose, ganhou um bom aumento salarial e uma licença remunerada de uma semana que, claro, ele não pode tirar porque a rotina trabalhista é muito punk, não dá para ficar muito tempo longe.


A lição que fica é que a literatura serviu de poderosa ferramenta que salvou a situação daquele chefe de pessoal naquele dia. Poderia não ter dado certo, mas ele tinha que tentar, pois como diz um ditado, “quem arrisca pode errar, quem não arrisca já errou”. Essa situação eu costumo chamar de situação de RH raiz, são situações que ocorrem no dia a dia sem muitas firulas, exige apenas a presença de espírito do momento, improvisação ou freestyle. Situações como essas fazem parte do ambiente de RH, como por exemplo, o dia em que um supervisor de RH cozinhou para os funcionários porque a cozinheira faltou. Mas essa já é outra história que contarei em breve. Bem, e aquele chefe de pessoal que se simulou um mau súbito? Uma piscadela responde?

 

domingo, 4 de abril de 2021

Se ̶n̶ã̶o̶ beber, não dirija ou coisas que a ciência jamais explica.




Ele viveu no século passado, seu apelido era minhoca, e não era pra menos. Magrelo, quase 2 metros de altura. Foi exímio goleiro reserva de um famoso time de futebol do interior paulista, só não foi efetivado como titular porque desde a juventude não era dono de muito juízo. Mulherengo, viciado em carteado (conhecia todos os jogos do baralho, inclusive as famosas mágicas) e bilhar carambola, era doente por carros antigos. Apreciador de uma boa cangibrina, o seu lema era: cachaça e volante e vamos adiante! Tentarei explicar aqui o que não tem explicação.


Minhoca teve várias profissões, desde a de goleiro reserva, tecelão, crupiê, vigia noturno, cozinheiro de clube clandestino de jogatina (sim, eles existem) e por fim, a de camelô na qual se aposentou. O homem sabia se virar com versatilidade. Chegou a ficar milionário numa noite em uma rodada de poker, se empolgou, apostou tudo que ganhou e saiu pela manhã do clube só com a roupa do corpo perdendo casa, carro e quase a própria segunda mulher. Era viúvo. Mas também ganhou alguns trocados no 21, grana essa que ele usou para comprar um novo carro que claro, perdeu numa próxima rodada de carteado. E assim minhoca levava a vida que pediu a Deus, apesar de sempre se declarar ateu. Um figuraço!


Fazia o tipo do malandro boêmio, tinha um estilo próprio de se vestir, gostava de usar terno safari anos 70 igual ao do Jânio Quadros (dê um google), chapéu de panamá, e sempre de mocassim branco sem as meias. Cabelo lateral (porque ele era careca) lambido para trás emplastrado de brilhantina, bigodinho de cafajeste. Era um pé de valsa, frequentava bailes de gafieira, tinha todos os discos (em vinil!) da Orquestra Tabajara e dos Demônios da Garoa. Cozinheiro de mão cheia, fazia um caldo de mocotó como ninguém sabia fazer, digno de um masterchef. Conhecia os melhores botequins pés sujos da cidade e sempre indicava aonde se poderia comer a melhor moela de frango acebolada no vinagre e fritada de jiló crocante com pimenta jalapeño.


Desde jovem, jamais se sentou ao volante de um automóvel sem antes finalizar numa só golada um copo americano cheio de cachaça, pois para ele, gasolina era o combustível do carro e cachaça o combustível do motorista. Muita gente que o conheceu foi testemunha viva desse fato. Levava garrafas de cachaça no veículo e quando dava na telha tomava com gosto uma talagada no próprio gargalo estalando o beiço. Pior que o desgraçado quando embriagado dirigia mesmo como ninguém, era mesmo um ás ao volante, tirando finas do meio fio e cantando pneus em curvas fechadas inclinando o carro em duas rodas. Era algo aterrorizador de se ver, quem via levava as mãos à cabeça e fazia o sinal da cruz.


Quando decidiu ser camelô, comprou uma sinistra perua Kombi. E todos disseram em alto e bom som: a morte vem aí! Só que não! Uma vez por semana ia de Kombi no Brás em São Paulo comprar roupas e bugigangas para abastecer sua banca de camelô. Até chegar ao destino finalizava uma garrafa de cachaça, na volta finalizava a segunda. E a Kombi vinha pesada rasgando asfalto a cem por hora pela via Anhanguera, explodindo óleo queimado e fumaça preta pelo escapamento aberto. Deixava carro de bacana para trás comendo poeira. Minhoca firme ao volante, reflexo de piloto de formula 1, pronto a desviar num átomo de segundo se algo atravessasse a sua frente e pasmem, por diversas vezes evitou acidentes de motoristas imprudentes, pois sabia os segredos de um volante bem “volanteado”. Para ele não existia esse papo furado de “fulano perdeu a direção”, isso era conversa mole de motorista barbeiro e navalha, coisas que passavam longe dele, quilômetros de distância.


Descia da Kombi lúcido, impávido e muito sóbrio, ainda que ébrio. Firme como uma rocha descarregava sozinho toda mercadoria. Não trançava as pernas, não falava com voz embargada, tinha apenas o rosto afogueado, o cigarro no canto dos lábios e uma risada nervosa que poderia dizer tudo, ou mesmo nada. Cansado, se jogava num canto do sofá e ali mesmo dormia pelo resto do dia. Um bafo de álcool e fumaça de cigarro apagado pairavam no ar por horas a fio. 


Óbvio que essa dieta etílica sistemática não lhe fez bem. Pegou uma úlcera brava, irreversível. Adoeceu e foi internado para tratamento (da úlcera, não do alcoolismo). Sentia muita falta da inseparável marvada. E o tratamento até que estava estava indo bem,  mas pegou uma infecção hospitalar e faleceu aos 68 anos de idade.


Bem, minhoca nunca se envolveu em acidente, nenhuma colisão, nenhum ralado ou arranhado nos mais de 10 tipos de carros que teve e todos impecáveis e reluzentes, nem mesmo um simples toque de para-choque. Nenhuma multa de trânsito, nenhum sinal vermelho ultrapassado, nenhum ponto negativo em sua CNH. E olha que minhoca rodou manguaçado por esse Brasil por estradas esburacadas e de terra que só ele conhecia.  Seu único deslize automobilístico foi ter fundido o motor de um chevette 74 por ter subido no talo uma ladeira íngreme. O estrondo assustou a vizinhança, todos saíram para ver. Minhoca apenas sorriu aquela risadinha nervosa que poderia dizer tudo ou mesmo nada.


Diz a sabedoria popular que Deus protege os bêbados e as criancinhas. E o que diz mesmo a estrela do momento, promovida a santidade, a reverendíssima ciência sobre bebida e volante? Hein? Se beber não dirija? Você teria coragem de dizer isso ao minhoca? Pois eu não teria, nem pensar! E o que minhoca diria? Bem, minhoca não diria, ele iria te convidar para dar uma volta em sua sinistra perua Kombi. Ou então olharia pra você com aquela risadinha nervosa que poderia dizer tudo ou mesmo nada. Minhoca mostrou que não, que não é bem assim, que existem mil coisas neste mundo que a ciência nunca explicou e jamais explicará, mesmo porque a explicação pode não estar nesse mundo. Ainda bem, Tim Tim!


In memorian de Moacir Cardinalli (a.k.a. Minhoca) 

 

Empregado que teve IRRF durante o exercício de 2023 deve apresentar a declaração anual de IRPF

Dia 31 de Maio é o último dia para entregar a Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física. Está obrigado a entregar a declaração quem ob...