Recentemente, um vídeo se espalhou pelas redes sociais no qual uma motorista por estar em excesso de velocidade e fugindo da blitz, quando abordada por um policial atacou de carteirada: “Eu sou arquiteta!!”. Como se a condição de arquiteta (ou qualquer outra profissão) fosse salvo conduto para desobedecer às ordens do policial de trânsito que estava fazendo exemplarmente o seu serviço.
Essa frase ridícula, típica de emergente rastaquera e provinciana proferida pela motorista é uma variante da famigerada frase, “Você sabe com quem está falando?”, também conhecida no guia das falácias como argumentum ad verecundiam ou argumento de autoridade. Ou seja, foge-se do assunto principal em questão apelando-se para a posição social, cargo, profissão ou prestígio que a pessoa detém, trocando a autoridade do argumento pelo argumento de autoridade. O próprio policial ao ouvir essa asneira disse a ela: “mas o que a profissão da senhora tem a ver com isso?” Pois eu digo, não tem absolutamente nada a ver.
A carteirada é nossa velha conhecida em terras tupiniquins. Esse fenômeno “você sabe com quem está falando?” arraigado na cultura do brasileiro que adora levar vantagem em tudo, já foi e continua sendo objeto de pesquisa de sociólogos, antropólogos, psicólogos e já nos deu excelentes teses e livros a respeito. O antropólogo Roberto da Matta em seu sensacional livro, “Carnavais, Malandros e Heróis”, abordou o tema com brilhantismo no ensaio, “Você Sabe com quem Está falando?”.
Em artigo de 2011 na Revista Trip, Roberto da Matta voltou a refletir sobre o tema. Vejamos dois trechos:
“Não há nada mais claro da nossa aversão aos limites do que essa recusa de obedecer à lei, o cargo público para o qual fomos eleitos ou o sinal de trânsito. Uma pessoa, como digo no citado ensaio, que não foi criada para pensar em limites, porque todos somos (ou fomos) filhinhos de mamãe e criados em ambientes onde sabíamos perfeitamente bem quem era superior, quem era subordinado, quem mandava e quem obedecia, não pode funcionar igualitariamente na rua, onde ninguém é de ninguém ou sabe quem são os outros”.
"A dificuldade em usar com tranqüilidade o “Você sabe com quem está falando”?” decorre da massificação da sociedade brasileira, que, com o aumento de renda e dos mecanismos destinados a melhorar o consumo das camadas mais pobres, tornam todo mundo muito mais parecido e de certo modo obriga tanto o milionário filho de família tradicional quanto o pedreiro, o padeiro, o garçom, o estudante, o operário e o empregado doméstico a entrar numa fila. E, nela, a pensar que somos todos realmente iguais em certas situações públicas porque o limite do outro garante o meu limite".
O caso da motorista arquiteta ficou conhecido porque um dos policiais filmou a abordagem. Carteiradas desse tipo ocorrem aos borbotões todos os dias, seja no trânsito, nas filas dos bancos, aeroportos, etc. O brasileiro tem um fetiche obsceno por títulos, diplomas floreados e cargos pomposos. Muitos usam isso a seu favor para mascarar a sua ignorância, falta de cultura e profunda inabilidade para lidar com as leis ou obedecer ordens. É a arrogância que esconde a fraqueza da imbecilidade e a vacância de idéias.
Nos próprios estatutos e códigos de ética das profissões liberais (e a Arquitetura é uma profissão liberal) consta cláusula em que o associado não poderá usar de sua condição profissional para obter qualquer tipo de vantagem pessoal. Se funcionário público, ainda pior, porque de acordo com ao artigo 316 do código penal, carteirada é crime de concussão e improbidade administrativa, sujeito à multa, perda do cargo e reclusão de 2 a 8 anos.
Ao tentar dar uma carteirada no policial, a motorista passou recibo de beócia e ignorante, pois como arquiteta deveria estar ciente que o artigo 5º da Constituição Federal diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...” e como profissional arquiteta ela não é mais igual do que ninguém.
Um comentário:
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