domingo, 4 de abril de 2021

Se ̶n̶ã̶o̶ beber, não dirija ou coisas que a ciência jamais explica.




Ele viveu no século passado, seu apelido era minhoca, e não era pra menos. Magrelo, quase 2 metros de altura. Foi exímio goleiro reserva de um famoso time de futebol do interior paulista, só não foi efetivado como titular porque desde a juventude não era dono de muito juízo. Mulherengo, viciado em carteado (conhecia todos os jogos do baralho, inclusive as famosas mágicas) e bilhar carambola, era doente por carros antigos. Apreciador de uma boa cangibrina, o seu lema era: cachaça e volante e vamos adiante! Tentarei explicar aqui o que não tem explicação.


Minhoca teve várias profissões, desde a de goleiro reserva, tecelão, crupiê, vigia noturno, cozinheiro de clube clandestino de jogatina (sim, eles existem) e por fim, a de camelô na qual se aposentou. O homem sabia se virar com versatilidade. Chegou a ficar milionário numa noite em uma rodada de poker, se empolgou, apostou tudo que ganhou e saiu pela manhã do clube só com a roupa do corpo perdendo casa, carro e quase a própria segunda mulher. Era viúvo. Mas também ganhou alguns trocados no 21, grana essa que ele usou para comprar um novo carro que claro, perdeu numa próxima rodada de carteado. E assim minhoca levava a vida que pediu a Deus, apesar de sempre se declarar ateu. Um figuraço!


Fazia o tipo do malandro boêmio, tinha um estilo próprio de se vestir, gostava de usar terno safari anos 70 igual ao do Jânio Quadros (dê um google), chapéu de panamá, e sempre de mocassim branco sem as meias. Cabelo lateral (porque ele era careca) lambido para trás emplastrado de brilhantina, bigodinho de cafajeste. Era um pé de valsa, frequentava bailes de gafieira, tinha todos os discos (em vinil!) da Orquestra Tabajara e dos Demônios da Garoa. Cozinheiro de mão cheia, fazia um caldo de mocotó como ninguém sabia fazer, digno de um masterchef. Conhecia os melhores botequins pés sujos da cidade e sempre indicava aonde se poderia comer a melhor moela de frango acebolada no vinagre e fritada de jiló crocante com pimenta jalapeño.


Desde jovem, jamais se sentou ao volante de um automóvel sem antes finalizar numa só golada um copo americano cheio de cachaça, pois para ele, gasolina era o combustível do carro e cachaça o combustível do motorista. Muita gente que o conheceu foi testemunha viva desse fato. Levava garrafas de cachaça no veículo e quando dava na telha tomava com gosto uma talagada no próprio gargalo estalando o beiço. Pior que o desgraçado quando embriagado dirigia mesmo como ninguém, era mesmo um ás ao volante, tirando finas do meio fio e cantando pneus em curvas fechadas inclinando o carro em duas rodas. Era algo aterrorizador de se ver, quem via levava as mãos à cabeça e fazia o sinal da cruz.


Quando decidiu ser camelô, comprou uma sinistra perua Kombi. E todos disseram em alto e bom som: a morte vem aí! Só que não! Uma vez por semana ia de Kombi no Brás em São Paulo comprar roupas e bugigangas para abastecer sua banca de camelô. Até chegar ao destino finalizava uma garrafa de cachaça, na volta finalizava a segunda. E a Kombi vinha pesada rasgando asfalto a cem por hora pela via Anhanguera, explodindo óleo queimado e fumaça preta pelo escapamento aberto. Deixava carro de bacana para trás comendo poeira. Minhoca firme ao volante, reflexo de piloto de formula 1, pronto a desviar num átomo de segundo se algo atravessasse a sua frente e pasmem, por diversas vezes evitou acidentes de motoristas imprudentes, pois sabia os segredos de um volante bem “volanteado”. Para ele não existia esse papo furado de “fulano perdeu a direção”, isso era conversa mole de motorista barbeiro e navalha, coisas que passavam longe dele, quilômetros de distância.


Descia da Kombi lúcido, impávido e muito sóbrio, ainda que ébrio. Firme como uma rocha descarregava sozinho toda mercadoria. Não trançava as pernas, não falava com voz embargada, tinha apenas o rosto afogueado, o cigarro no canto dos lábios e uma risada nervosa que poderia dizer tudo, ou mesmo nada. Cansado, se jogava num canto do sofá e ali mesmo dormia pelo resto do dia. Um bafo de álcool e fumaça de cigarro apagado pairavam no ar por horas a fio. 


Óbvio que essa dieta etílica sistemática não lhe fez bem. Pegou uma úlcera brava, irreversível. Adoeceu e foi internado para tratamento (da úlcera, não do alcoolismo). Sentia muita falta da inseparável marvada. E o tratamento até que estava estava indo bem,  mas pegou uma infecção hospitalar e faleceu aos 68 anos de idade.


Bem, minhoca nunca se envolveu em acidente, nenhuma colisão, nenhum ralado ou arranhado nos mais de 10 tipos de carros que teve e todos impecáveis e reluzentes, nem mesmo um simples toque de para-choque. Nenhuma multa de trânsito, nenhum sinal vermelho ultrapassado, nenhum ponto negativo em sua CNH. E olha que minhoca rodou manguaçado por esse Brasil por estradas esburacadas e de terra que só ele conhecia.  Seu único deslize automobilístico foi ter fundido o motor de um chevette 74 por ter subido no talo uma ladeira íngreme. O estrondo assustou a vizinhança, todos saíram para ver. Minhoca apenas sorriu aquela risadinha nervosa que poderia dizer tudo ou mesmo nada.


Diz a sabedoria popular que Deus protege os bêbados e as criancinhas. E o que diz mesmo a estrela do momento, promovida a santidade, a reverendíssima ciência sobre bebida e volante? Hein? Se beber não dirija? Você teria coragem de dizer isso ao minhoca? Pois eu não teria, nem pensar! E o que minhoca diria? Bem, minhoca não diria, ele iria te convidar para dar uma volta em sua sinistra perua Kombi. Ou então olharia pra você com aquela risadinha nervosa que poderia dizer tudo ou mesmo nada. Minhoca mostrou que não, que não é bem assim, que existem mil coisas neste mundo que a ciência nunca explicou e jamais explicará, mesmo porque a explicação pode não estar nesse mundo. Ainda bem, Tim Tim!


In memorian de Moacir Cardinalli (a.k.a. Minhoca) 

 

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