segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O verdadeiro mestre e o verdadeiro discípulo*




Por Georges Gusdorf

Cada aluno é um aluno entre todos os alunos na classe reunida; e o professor quando dá aula fala a mesma língua a todos. Mas esta pedagogia em série que confronta o professor e a classe acompanha-se, ou pode acompanhar, de uma relação de pessoa para pessoa; o professor pode ser também um mestre, e cada aluno um discípulo, em situação de diálogo e sob a invocação de uma vontade de verdade que constrói entre eles uma visível comunidade. Tal como Guliver entre os anões, ligado à terra por uma infinidade de pequenos fios que o imobilizam, o mestre está ligado à sua classe não somente por uma mutualidade maciça, mas também por uma reciprocidade detalhada com cada um daqueles que o escutam. O monólogo aparente da palavra docente decompõe-se, na análise, numa multidão de diálogos. O erro da pedagogia usual é se ater à aparência macroscópica do professor que se confronta com sua classe; a pedagogia verdadeira, à imagem da física contemporânea, teria de passar ao plano microscópico; em lugar de considerar a média estatística, aplicar-se-ia aos dados individuais primários. Um classe de trinta alunos, tal como de passagem a observa um inspetor, é apenas resultante de trinta diálogos simultâneos, sendo que cada um tem seu próprio sentido e valor.

Os sociólogos franceses da escola de Durkheim, e na tradição de Auguste Comte, ensinavam que o grupo não é a soma dos indivíduos que o compõem, e sim que possui uma realidade própria capaz de se impor ao indivíduo. O caso particular da classe mostra bem o valor e os limites da interpretação. A classe existe, é verdade, como tal; cada aluno pertence à sua classe, e o professor julga esta globalmente: há classes ruins, medíocres ou boas, classes inertes e outras cheias de vida. Mas há também orquestras de grande qualidade, e outras que não saem, da mediocridade; será a boa orquestra os bons instrumentistas, ou os instrumentistas é que fazem o valor da orquestra? E, aliás, a mesma orquestra não rende de maneira diferente segundo a personalidade do maestro que a conduz? Percebemos sem muito esforço que os grandes sucessos, tanto no campo musical como no pedagógico, correspondem a um conjunto de coincidências e encontros particulares. A situação de conjunto rege sobre cada um dos participantes, mas é o concerto dos participantes, a harmonia das personalidades e a utilização feita desta harmonia pelo maestro responsável que suscitam a situação de conjunto.

O professor “dá aula” para esses trinta alunos. Mas, sob o anonimato desta realidade objetiva, há talvez um mestre que deseja ser compreendido; e talvez haja trinta discípulos possíveis, trinta, vinte, ou dez existências à espreita de uma palavra de vida que cada uma espera seja dita só para si. Acontece, sem dúvida, e amiúde, que o professor nada tenha a dizer; e também acontece que a massa dos alunos nada tenha a ouvir. Mas o sentido profundo, a justificação essencial da atividade pedagógica é o encontro furtivo, a secreta cumplicidade que se estabelece ao sabor de uma frase, quando o discípulo conhece e reconhece nesse homem que fala no vazio um revelador do sentido da vida. Pode acontecer de essa relação não ser jamais explicitamente confessada; pode acontecer de o mestre jamais te suspeitado o discípulo neste ou  naquele aluno, submerso na massa [...]

O discípulo só existe pois através do mestre, que lhe é mediador de existência. Mas o próprio mestre só é mestre graças ao discípulo. Há uma vocação do mestre para a mestria, de que só o testemunho do discípulo pode dar a revelação ao mestre [...]

O mestre suscita o discípulo, mas por vezes o discípulo suscita o mestre, e, em todo caso, justifica-o. Ambos vivem, solidários, a mesma aventura. O mestre foi, aliás, discípulo,  e o discípulo, se for digno do mestre, será mestre por sua vez. A educação do gênero humano, no que tem de melhor, prossegue de época para época segundo a exigência renovada desta cultura do homem pelo homem, de mestres para discípulos e de discípulos para mestres [...]

No diálogo entre mestre e discípulo, a verdade acha-se sempre como terceira; é esse terceiro termo que funda a relação entre os dois primeiros. Cada um dos dois, com efeito, não é para o outro um fim em si, um objeto de veneração ou devoção, mas um meio, um intercessor e um mediador no caminho da verdade em sua plenitude [...]

Todos os homens verdadeiramente grandes, dizia Lachelier, foram originais, mas não pretenderam sê-lo nem julgaram que o eram; ao contrário, foi procurando fazer das suas palavras e dos seus atos a expressão adequada da razão que eles encontraram a forma particular sob a qual estavam destinados a exprimi-las. A virtude de originalidade aparece, neste caso, ligada à preocupação de universalidade; o mestre é original sem tê-lo pretendido [...]

Cada homem guarda, sem dúvida, na memória algumas frases, algumas expressões que lhe vêm de seus tempos de escola: “Como diz o velho Fulano...” E a locução favorita de um antigo professor primário há muito desaparecido continua mensageira de uma lição de verdade, que uma vez ouvida jamais é esquecida.

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*Excertos do capítulo IX do livro "Professores para que?: Para uma pedagogia da pedagogia", de Georges Gusdorf, editora Martins Fontes, SP- 2003


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