Estamos numa situação (que talvez ainda perdure por muito tempo) em que a vida privada, pública, familiar e profissional se mistura de maneira perversa. Foi o que ocorreu com aquela secretária, hoje uma desempregada, que abandonou uma cadela numa avenida movimentada de São Paulo sob forte chuva. A imagem, naturalmente comoveu, sensibilizou e chocou o Brasil todo.
A secretária não estaria hoje desempregada, se aquele casal que vinha logo atrás não tivesse filmado tudo no celular e divulgado a triste cena nas redes sociais. Poderia o casal ter apenas entregue o vídeo às autoridades competentes e tudo se resolveria dentro da lei, mas, além disso, optou pelo espocar dos flashes expondo a secretária ao reality show perverso da execração pública e agora vai dormir tranqüilo (será?) já que ganhou na vida os 15 minutos de fama.
É óbvio que a atitude dessa secretária foi abominável para se dizer o mínimo, porém, até que ponto o que uma pessoa, ou indivíduo (gosto mais dessa palavra) faz de sua vida é de interesse público, coletivo e profissional? O que a escola em que a secretária trabalhava tem a ver se ela chuta cachorro, mata pardal com espingarda, roda gatos pelo rabo, pratica caça e pesca, freqüenta rodeios ou adora touradas? Conheço centenas de funcionários que fazem isso em suas vidas privadas e nem por isso foram ou são demitidos. Será que a escola em que ela trabalhava agiu corretamente em demiti-la? Vejamos:
É claro que não tem sentido e nem amparo na lei (salvo artigo 482, alínea “d” e artigo 482, parágrafo único da CLT) um empregado ser demitido por algo que ele tenha feito fora da empresa. Entretanto, como o vídeo se alastrou como viral, não seria difícil para as pessoas que adoram fazer justiça com as próprias mãos descobrir o local de trabalho da secretária. Haveria tumultos, arruaças nas portas da escola com direito a presença do grupo terrorista black bloc, mídia ninja e outros delinqüentes dessa estirpe. Acredito que a escola tenha agido com prudência e prevenção demitindo a secretária para evitar o quebra-quebra e até mesmo em prol da preservação da integridade física da mesma. Mas à luz da legislação, se a escola a demitiu pelo seu ato abominável, porém em circunstância privada, a escola errou.
Portanto, nos dias de hoje, todo o cuidado é pouco. É bom que as pessoas prestem bem atenção em suas atitudes, pois vivemos numa sociedade de reality show na qual a desgraça alheia é deleite coletivo, situação descrita brilhantemente pelo escritor Mario Vargas Llosa em seu livro “A Civilização do Espetáculo”.
O olho do grande irmão profetizado no maravilhoso livro “1984” de George Orwell está em todo lugar, sobretudo na pele daquele alcaguete anônimo que te filma e te expõe ao mundo sem que você saiba. Deve-se ter muito cuidado ao freqüentar um rodeio, fazer uma brincadeira ou uma piada, caçar pardal, acender um cigarro. Tudo isso e muito mais poderá custar o seu emprego.
2 comentários:
Lembro que dia desses um rapaz em alguma cidade do interior paulista filmou uma senhora idosa espancando uns filhotes de cachorro. O ato é repulsivo, sim. Mas o do "Eastwood" do youtube foi igualmente repulsivo, pois pela gravação fica claro que ele teve que escalar o muro da senhora para poder realizar o "flagra". Postou no Facebook, ganhou muitas curtidas e o caso até apareceu no jornal da região. Qual dos três foi pior? Bons tempos, aqueles, quando a invasão de privacidade e propriedade ainda eram crimes...
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