Em Novembro deste ano, Clare Torry completou 75 anos. Há cinquenta anos atrás ao entrar no estúdio Abbey Road para fazer um backing vocal, ela sequer imaginava que escreveria o seu nome na história como coautora de uma das mais belas músicas de todos os tempos, “The Great Gig In The Sky”. A música faz parte do premiadíssimo (que até hoje vende horrores!) e lendário álbum “The Dark Side Of The Moon” dessa tão fantástica banda, Pink Floyd. É considerado um dos mais belos vocais femininos de todos os tempos sem ter dito uma única palavra e uma das interpretações mais emocionantes já gravadas em um álbum musical. Aos fatos:
Podemos dizer que na década de 70, Clare, muito discreta não era uma cantora famosa. Ela era contratada como compositora de uma pequena gravadora na Inglaterra. Clare lançou alguns singles no estilo pop/romântico com músicas de sua própria autoria e também gravou covers sob o pseudônimo de Alice Pepper. Como ela tinha uma bela voz diferenciada, ela ganhava uns trocados a mais como freelance fazendo o backing vocals para diversos músicos. Foi então que em 1972 ela recebe um convite de um gênio, o engenheiro de som, Alan Parsons para fazer um trabalho no álbum de uma banda. Mas Parsons não disse a ela qual banda era. É preciso entender antes o próprio Alan Parsons e o que o Pink Floyd queria.
Alan Parsons foi o engenheiro de som que trabalhou no álbum Abbey Road, dos Beatles e foi o responsável por todos os efeitos sonoros no álbum The Dark Side of The Moon, do Pink Floyd. A música “The Great Gig in The Sky” até então era apenas algumas notas musicais no estilo bluesy/jazzy (com um andamento gospel, eu diria) composta no piano e órgão pelo virtuoso e saudoso tecladista da banda, Rick Wright. Também havia uma frase ao fundo de alguém falando sobre o medo da morte. O guitarrista David Gilmour teve a ideia de colocar sobre essas notas um vocal feminino, mas não sabia exatamente quem chamar. E aí entra Alan Parsons, ele disse que conhecia alguém. Parsons tinha produzido um álbum de covers no qual havia a participação de uma cantora com uma voz muito bacana: era Clare Torry! Ele a indicou para o trabalho.
Clare recebeu o convite mas, sem saber do que se tratava, achava que era para fazer um backing vocal num coral de garotas como ela estava acostumada. Ela se apresentou no estúdio num domingo à noite e somente na hora ficou sabendo que se tratava da já famosa banda Pink Floyd. Na verdade, Clare não se empolgou (e nem os membros da banda com ela), não ocorreu uma empatia entre ambos. O seu estilo era outro e bem diferente, mais direcionado à música pop/romântica e não tinha afinidade alguma com o som tão complexo do Pink Floyd. Mesmo assim, corajosa ela aceitou o desafio. E atenção aqui: ter aceitado esse desafio fez a diferença para sempre na vida dela.
Primeira e segunda tentativas frustradas
Gilmour disse para Clare improvisar alguma coisa sobre aquelas notas musicais de piano. Na primeira tomada ela arriscou alguns scats jazzísticos do tipo “Ooh Baby Ooh Baby Yeah Yeah Baby”. E Gilmour disse, “não, não, não é isso que queremos” e explicou a ela o conceito do álbum que falava sobre angústias, depressão e que a música significava a luta da vida contra a morte. De novo ela improvisa scats jazzísticos um pouco mais alongados mas ainda não era isso, não estava bom, disseram a ela que se fosse para fazer aquilo havia cantoras que fariam melhor do que ela!
Terceira tentativa: "boom!"
Clare pediu para passar mais uma vez a trilha do piano e disse para ela mesma: “e seu fingisse que fosse um instrumento musical”? Olhou para Alan Parsons e disse: “aperte a luz vermelha de gravação”. Então, ela fechou os olhos, soltou a voz e o que ela fez ali naquele momento é absolutamente desconcertante, é o que ouvimos na gravação! Ela nunca tinha cantado dessa maneira antes. Nem ela e nem ninguém! Quando ouvimos a melodia, acreditamos que Clare está seguindo uma partitura musical, só que não, na verdade ela é quem está compondo, vocalizando, construindo e improvisando uma melodia sobre as notas musicais criadas pelo piano de Rick. Ela não ensaiou antes, foi assim mesmo no improviso do momento. Como ela disse anos depois, "foi um boom espontâneo".
Quando ela terminou e abriu os olhos, estavam todos atônitos, chocados, em silêncio absoluto, ninguém havia entendido ainda o que tinha acontecido ali, nem mesmo Clare. Como ninguém da banda disse uma palavra sequer, ela achou que não foi bem e que não agradou. Ela pediu desculpas! Se despediu e recebeu as 30 libras pelo trabalho, como combinado! Isso mesmo, 30 libras, e isso porque era domingo, fosse dia normal seriam 15 libras. Como ela mesma disse depois, “para mim foi apenas mais um dia de trabalho”. Ela não fazia a menor ideia da obra prima que havia acabado de compor (só veio a descobrir quando o álbum foi lançado e ela a ouviu cantando). Ela conseguiu expressar brilhantemente através da sua vocalização dramática exatamente o que a melodia queria transmitir: a luta da vida contra a morte. É a única faixa do álbum que não tem efeitos sonoros, Parsons achou tão perfeita que não quis colocar efeitos, apenas jogou um eco bem suave no microfone de Clare.
Quando o álbum foi lançado, o nome de Clare constava apenas nos créditos como vocalista da faixa e não como coautora, fato esse, vamos combinar, foi uma baita sacanagem da banda. Mas ela não se importou, não reclamou na época a sua significativa contribuição ainda que essa faixa fosse e ainda é uma das mais comentadas do álbum em razão do seu vocal icônico. Daí em diante, ela recebeu muitas propostas de trabalho e participou de álbuns de músicos de peso como por exemplo, a própria banda Alan Parsons Project, Procol Harum, Meat Loaf, Kevin Ayers, Olivia Newton-John, Culture Club, Roger Waters, Tangerine Dream, TV-2, etc.
O vocal de Clare em “The Great Gig In The Sky”, até hoje é tema de análises e debates, sobretudo entre as professoras de canto e voz. Algumas delas, já confessaram que jamais conseguiriam fazer o que Clare fez com a voz. O controle absurdo da respiração, a maneira como ela articula e “assopra” as vogais, as ondulações de beltings, melismas e vibratos que contrastam com a voz da cabeça, do maxilar e a voz do peito formam uma peça musical única e irreproduzível. Nenhuma cantora conseguiu repetir exatamente o que Clare fez. Nas apresentações ao vivo do Pink Floyd, é preciso três cantoras para a execução dessa música. Mas Clare explicou que para uma só cantora executar a peça é um trabalho muito cansativo para as cordas vocais, por isso são necessárias duas ou três cantoras.
The Great Gig In The Sky é uma das campeãs de vídeos reaction no Youtube. Músicos e cantores dos mais diversos gêneros musicais quando ouvem a música pela primeira vez ficam hipnotizados e chocados com o trabalho de Clare; algumas cantoras de música gospel já acostumadas com muita emoção captam a mensagem da música logo que Clare começa a vocalizar, e elas não conseguem segurar as lágrimas. E um detalhe muito surpreendente : essa melodia já salvou vidas! Há inúmeros depoimentos a esse respeito. Muitas pessoas relatam que essa melodia ajudou-as a superarem momentos sombrios de suas vidas trazendo-lhes paz e luz. E sim, a Música pode salvar vidas (dê um google).
As lições que tiramos disso:
- Coragem, determinação e autoconfiança: Clare foi no escuro, sem saber o que lhe esperava, é quase como se ela fosse fazer um teste. Quando ela chegou no estúdio e tomou conhecimento do que se tratava, ela poderia ter desistido, mas não, encarou o desafio, ainda que não tivesse afinidade musical alguma com o trabalho do Pink Floyd. Lembrando que ela era uma crooner de seção de estúdio e pouco conhecida, embora ela soubesse compor. Além disso, o fato de ela ser escolhida pelo engenheiro que trabalhou com os Beatles lhe deu uma tremenda autoconfiança a tal ponto de não querer desapontar quem a indicou, no caso, Alan Parsons.
– Resiliência, determinação, suportar pressão: Nas duas primeiras tentativas ela falhou miseravelmente a tal ponto de chegar a ser hostilizada por um dos membros da banda. Fosse outra cantora de pavio curto poderia ter encerrado ali mesmo e ter dito: “bye bye, procurem outra”. Mas ela não se importou com o esculacho que levou, teve casca grossa, aguentou firme, respirou fundo e foi para a terceira tentativa (e com certeza quantas mais ela conseguisse) cujo resultado nós já sabemos qual foi, porque aquela noite era para ela brilhar absoluta, ainda que ela não soubesse.
- Naquela noite no estúdio, ela descobriu que poderia cantar daquela maneira, coisa que ela nunca tinha feito antes. Aconteceu no lugar certo, na hora certa. Não é incomum durante a vida as pessoas descobrirem que são portadoras de talentos que até então desconheciam. De repente, a pessoa descobre que tem vocação para pintura, escultura, gastronomia, jardinagem, dramaturgia música, seja tocando algum instrumento ou talento para o canto, para dança, etc. Também que às vezes podemos fazer as coisas de maneira diferente como estamos habituados a fazer e que poderá nos tornar mais talentosos e abrir novos caminhos, novos horizontes.
Clare subiu ao palco com o Pink Floyd para interpretar a melodia apenas duas vezes: em 1973 no Rainbow Theatre e em 1990 no espaço Knebworth Park. E de novo, aos 52 anos de idade ela barbarizou dando uma nova interpretação na obra que ela própria construiu. Finalmente em 2004 quando se aposentou ela entrou com uma ação contra o Pink Floyd requerendo os royaltes e a coautoria da composição. Um acordo extrajudicial foi firmado cujo valor não foi revelado e a partir de então o nome de Clare Torry passou a constar como coautora da peça musical ao lado de Rick Wright em todos os álbuns do Pink Floyd. Em 2010 ela recebeu da Ivors Academy, do Reino Unido o prêmio BASCA Gold Badge Awards em reconhecimento à sua contribuição original e única para a música.
E mais uma vez, a improvisação de uma cantora foi protagonista de uma peça musical única, original, uma obra prima da música. “E se eu fingisse que fosse um instrumento musical?” Deus do céu, como ela pôde ter esse insight ("boom", como ela disse) naquele momento? Na rara entrevista que Clare concedeu, ela disse que coisas assim acontecem apenas uma vez na vida e que ainda acha estranho tudo o que aconteceu ali. Pensou um pouco e disse: "naquela noite, Deus sorriu para mim!". Por que não? Afinal, ela compôs uma peça musical que já salvou vidas! Uau! E acredito fortemente que essa melodia continuará salvando muitas vidas mais.
Obs: Após o prelúdio de introdução, o vocal de Clare começa em 1:06
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