segunda-feira, 24 de junho de 2024

O mito da comidinha da vovó, o bife em 3D e a salada criptografada

Muitos profissionais da gastronomia seja atuando no setor de pratos salgados seja no setor da confeitaria quando passam suas receitas costumam se utilizar de apelos mágicos e nas mais das vezes enganosos invocando frases de efeito, tais como, “a comidinha da vovó” ou “comidinha com sabor da infância”. Mas, será mesmo que as vovós cozinhavam ou ainda cozinham tão bem assim? E esse tal “sabor da infância”? Infância por acaso tem sabor? Vamos analisar isso:

Primeiramente será preciso fazer um cálculo aproximado da idade do profissional que está passando a sua receita para termos uma ideia em que década ele passou a sua infância e provou dos pratos e receitas que a sua vovó fazia. E isso faz toda diferença porque até a década de sessenta do século XX ainda era bem reduzida a disputa do mercado de trabalho pelas mulheres. Temos então que considerar três pontos importantes: 

- Em razão das mulheres se dedicaram mais às prendas domésticas, sobrava mais tempo para aprofundar conhecimentos em culinária (e em outras prendas também, por exemplo, costura, tricô, crochê, etc.). Faziam cursos livres e adquiriam os mais diversos livros de receitas. Em toda residência sempre havia um exemplar do volumoso livro “Receitas da Dona Benta” que através dos tempos acabou se tornando praticamente a bíblia da culinária e que realmente deixa nas chinelas toda bibliografia moderna sobre culinária. Além disso, muitas empresas distribuíam gratuitamente junto com seus produtos alimentícios atrativos livros de receitas saborosas e de fácil execução.  Livros modernos de gastronomia em capa dura estão mais para objetos decorativos, pois dão mais destaque às imagens captadas dos pratos em ângulos estratégicos e muito bem produzidos, porém com receitas para lá de duvidosas sem contar que nenhuma delas dá certo ao serem executadas. E assim o trabalho do fotógrafo acaba tendo mais destaque do que o próprio tema gastronomia.

- Um segundo ponto a ser considerado é sobre o setor frigorífico. Este setor  disponibilizava no mercado diversos tipos de carnes e seus derivados, seja bovinas, suínas ou de aves. Os produtos eram vendidos resfriados, fato esse que dava aos produtos mais sabor na hora da execução dos pratos. Atualmente todo tipo de carne é vendido na condição de congelado (absurdamente congelado) o que torna o produto praticamente sem sabor pela excessiva concentração de líquidos, de maneira que nenhuma avó cozinheira de mão cheia poderia fazer milagre e deixar esses alimentos com “sabor de infância”.

- E um terceiro fator muito importante: em cidades do interior aonde normalmente residiam nossas avós e passamos a nossa infância, a comida era feita em fogão a lenha em tachos de cobre e grossas panelas de barro ou de ferro. Essa forma de cozimento altera significativamente para melhor o sabor da comida. Os alimentos ficavam horas cozinhando sob o aroma da fumaça da lenha em brasa e provavelmente venha daí a memória afetiva do “sabor da infância”.

Já provei muitas refeições nos almoços com amigos feitas pelas suas avós e inclusive as minhas duas avós que cozinhavam muito bem, verdade seja dita. No entanto, com todo o devido respeito por todas essas avós, já provei refeições muito mais saborosas do que as delas, seja nos temperos utilizados e nas formas da execução dos pratos. Além disso Já assisti diversos vídeos de vovós youtubers passando receitas de forma totalmente equivocada no preparo dos pratos.

Portanto, um mestre cozinheiro que almeja ser o melhor na sua profissão não deve nem pensar em emular a comidinha da vovó ou o sabor da infância. A comida de um bom chef deve ter a sua própria assinatura e que seja absolutamente única e inconfundível. Ele encontrará pelo caminho fortes concorrentes que terá que superar: os bifes em 3D, as saladas criptografadas, o LNG (legume-não-legume) ou mesmo o conceito de comida via ASMR. Sim eles já existem por aí. Superar essa concorrência pode ser fácil ou não e quem vai decidir sobre essa questão quem sabe serão os netos desses cozinheiros. Lembrarão também eles, os netos desses cozinheiros, do sabor da infância? Ou do legume-não-legume?

 

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