“A sensibilidade não deixa de ter lugar ao volante de um caminhão” (Georges Arnaud)
O Salário do Medo foi o romance de estreia do escritor francês Georges Arnaud. Escrito no ano de 1950, imediatamente recebeu aplausos da crítica e do público sendo traduzido para diversas línguas tornando-se um best seller mundial. A história se passa numa cidadela da Guatemala com toques autobiográficos em razão do escritor ter residido algum tempo naquele país tendo contato com alguns dos personagens da trama. Quatro corajosos motoristas aceitam fazer um transporte de nitroglicerina em caminhões precários, verdadeiras latas velhas e detonados, dirigindo por estradas esburacadas e lamacentas no fio da navalha dos precipícios. Um solavanco mais forte e tudo irá pelos ares.
A trama se passa numa pequena cidade pobre de nome Las Libras. A única empresa local é uma multinacional americana chamada Crude que explora poços de petróleo naquela região. Fora os habitantes indígenas nativos, a maioria dos outros habitantes é formada por marginais egressos de outros países, tais como, desertores, ex-marinheiros, ex-mercenários, contrabandistas, fugitivos foras da lei, etc. Toda essa gente foi para lá numa situação emergencial para ficar poucos dias. Entretanto, entrar na cidade é fácil, mas para sair o valor da passagem seja por balsa ou avião particular é um preço absurdo e praticamente impossível de se conseguir. A única diversão local é um boteco do tipo “pé sujo” de nome “Corsário Negro” no qual esse pessoal se encontra para se embebedar e trocar suas mágoas.
Ocorre um incêndio em dos poços de petróleo. Evidentemente que esse fogo não vai se apagar facilmente. Os engenheiros então decidem que a solução é a explosão total do poço em chamas e para isso precisarão de mil e quinhentos quilos de nitroglicerina que serão transportados por caminhões. Da sede da companhia de onde partirão os caminhões são quinhentos quilômetros de distância. Elaboram então um anúncio para o recrutamento dos motoristas:
“Contratam-se excelentes motoristas de caminhões. Trabalho perigoso. Salários elevados. Dirigir-se ao RH da Cia.”
Vinte candidatos se apresentam, quando tomam conhecimento do tipo de carga metade desiste da vaga. Os dez restantes fazem os testes. Quatro são aprovados: o francês Gérard Sturmer, o romeno Johnny Mihalescu, o italiano Luigi Stornatori e o espanhol Juan Bimba. O transporte será feito em dois caminhões modelo KB7. Gérard revezará o volante com Johnny e Luigi revezará com Bimba. O francês Gérard é o principal personagem central e Johnny em seguida. O autor do livro não dá mais informações sobre Luigi Stornatori e Juan Bimba. Cada um dos motoristas receberá a importância de mil dólares por viagem.
Gérard Sturmer já trabalhava como peão de obra na Cia de petróleo Crude. É um fugitivo da lei, foi garimpeiro, contrabandista, motorista de fuga e pode-se dizer exímio motorista, um ás no volante. Já dirigiu pesados caminhões subindo e descendo ladeiras escarpadas nos Andes, atravessou pontes de madeira podre sobre rios, fazia os diabos ao volante. Gérard tem uma namorada chamada Linda que é garçonete no boteco Corsário Negro. Johnny Mihalescu foi chofer na Romênia, entende de mecânica de autos, se meteu com o crime organizado, assassinou uma pessoa e teve que fugir vindo parar em Las Libras.
Os dois caminhões (que não têm amortecedores!) já carregados partem no começo do anoitecer e deverão chegar ao destino antes do sol nascer, pois a carga não poderá aquecer para não entrar em combustão e explodir. Luigi e Bimba saem na frente, Gérard e Johnny partem meia hora depois. Gerárd e Johnny têm perfis completamente opostos; Gérard é sarcástico e muito seguro ao volante; Johnny é o tipo reclamão, meio dandi, fala diversas vezes em desistir durante o trajeto e sente-se bem desconfortável quando tem que assumir o volante no revezamento. Os dois não se entendem muito bem.
As situações de perigo chocantes que essa dupla passou ao volante deixarei para o leitor saborear na leitura desse instigante livro. Posso adiantar que graças às habilidades, perícia e sensibilidade acima da média que Gérard demonstrou no domínio do caminhão beira ao surreal. O cara realmente foi um monstro ao volante durante o trajeto. Porém, ocorre um incidente grave: já próximo ao destino o KB7 atolou na lama e empacou. Johnny desce do caminhão para guiar Gérard enquanto este acelerava e virava o volante e nada de sair do atoleiro. Está muito escuro, Johnny escorrega na lama, cai de costas e a roda direita do caminhão passa sobre sua perna. Não havia caixa de primeiros socorros, apenas uma garrafa de rum. Gérard esta fora si, banhado de suor, as mãos já em carne viva de tanto esterçar o volante; Johnny terá poucos minutos de vida. Antes de falecer, Johnny revela um truque a Gérard que vai tirar o caminhão do atoleiro. O truque consiste em amarrar uma corda no eixo das rodas traseiras e a outra ponta num tronco de árvore. O truque funciona, o caminhão salta da lama, mas Johnny já não vivia mais. Gérard coloca o corpo de Johnny na boleia e segue em frente, falta pouco, o dia está quase amanhecendo.
Por fim, o caminhão de Gérard chega ao alojamento, ele é o único que conseguiu! Sim, Luigi e Bimba não conseguiram, o caminhão foi pelos ares, Gérard e Johnny viram ao longe a bola negra de fogo subindo aos céus. Gérard é recebido e aplaudido pelos supervisores que o esperam. Exausto ele toma um banho e descansa enquanto a carga é descarregada. Johnny é enterrado, o supervisor considera que foi um incidente inevitável e dá a Gérard o valor que Johnny receberia. Gérard pega o cheque de dois mil dólares que trocará quando chegar na Cia. Para ele basta, ele não fará outra viagem, pedirá demissão ao chegar, mas não diz nada ao supervisor. O supervisor lhe oferece um chofer para leva-lo de volta, mas Gérard não aceita, ele mesmo quer voltar dirigindo aquela geringonça.
Gérard agora vai feliz da vida com o cheque de dois mil dólares, valor suficiente para ir embora de Las Libras. Não há mais carga perigosa, então agora ele vai fazer essa lata velha decolar. Pisa fundo, pé no talo, oitenta, noventa por hora, faz as curvas em duas rodas cantando pneus. A lata velha obedece, ele agora já pode chama-la de sua, porque ele é bom no que faz, acariciando o volante de madeira, é muito bom motorista, subiu e desceu as ladeiras escarpadas nos Andes, atravessou altas pontes de madeiras podres sobre as águas com o caminhão carregado e agora tinha no currículo um transporte de nitroglicerina. Gérard quer chegar rápido e zarpar com sua namorada Linda dessa espelunca para sempre. Faltam apenas dezesseis km para chegar. O KB7 voa na estrada a cem por hora porque Gérard é o melhor motorista do mundo, ele é o cara! Só que não! Gérard num reflexo vê a placa passar como um raio indicando “Reduza, fim de pista!” Gérard reduz a marcha desesperadamente, o diferencial geme, os pneus uivam, o cardan de transmissão se rompe e o caminhão entra em roda livre. Apenas trinta metros o separa do precipício, sessenta por hora, mas ainda é excessiva, os pedais não obedecem mais, não há mais nada a fazer, o destino de Gérard, o melhor motorista do mundo é selado ali inacreditavelmente!
Dessa leitura podemos tirar algumas lições. Escolhi duas:
1-Muitos que leram o livro chegaram a conclusão de que o valor pago por viagem (mil dólares) é um valor ultrajante e ridículo haja vista a periculosidade da carga e as péssimas condições dos caminhões e da estrada. No entanto cada um dos motoristas tinha o seu propósito, queriam se mandar o mais rápido possível de Las Libras e talvez aceitassem fazer o transporte até por um valor menor. Eu conversei com dez caminhoneiros, seis homens e quatro mulheres, perguntei a eles se aceitariam esse tipo de transporte de nitro naquelas condições e a resposta foi surpreendente: apenas três não aceitariam, os outros sete disseram que sim sem titubear, mesmo com aquele tipo de caminhão KB7, embora cobrariam um valor mais alto. Mentiram? Não há como saber.
2-Excesso de autoconfiança nunca é recomendável, ele costuma ocorrer justamente com os melhores profissionais. Gérard era um baita motorista! No entanto, o melhor cozinheiro tem o seu dia de errar no tempero e o melhor músico pode errar algumas notas. Gérard no seu retorno cometeu um lapso em desconsiderar a situação de perigo da estrada e daquele caminhão, ele teve um surto de excesso de confiança que acabou custando-lhe a vida. Deveria ter aceitado a oferta do chofer. Como disse o autor do livro, Gérard foi vítima de seu entusiasmo. Uma pequena dose de medo é sempre bem vinda em algumas ocasiões, uma gota sutil que poderá alterar a situação. Eu diria que uma pitada de prudência foi a marcha que faltou entrar para Gérard parar aquele caminhão.
Notas:
1- Em 1953, o diretor Henri-Georges Clouzot filmou "O Salário do Medo" fiel ao roteiro com Yves Montand no papel principal do motorista Gérard Sturmer. No entanto, o diretor deu destaque também para o personagem Bimba interpretado pelo ator Peter van Eyck que ganhou o prêmio de ator coadjuvante por essa interpretação.
2- Em 1977, William Friedkin (falecido em agosto desse ano) fez uma refilmagem com o nome "Sorcerer" (no Brasil, "O Comboio do Medo) não tão fiel ao livro alterando algumas passagens. No entanto, as cenas dos caminhões são as mais impressionantes filmadas até hoje e o filme é considerado um dos melhores de ação/suspense de todos os tempos. Roy Scheider fez o papel do motorista principal. A trilha sonora é da banda alemã Tangerine Dream!
3- A Netflix divulgou em Abril desse ano um remake do roteiro original baseado no livro de Georges Arnaud. O filme é dirigido pelo cineasta Julien Leclercq e terá um mulher como motorista de um desses caminhões. O papel é da atriz Ana Girardot. Aguardemos!!
Abaixo as impressionantes cenas dos caminhões sobre a ponte, trailer do filme Sorcerer -O Comboio do Medo- de 1977. Os dois caminhões conseguem passar.
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