segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Zora Neale Hurston: ampliando os horizontes*




"Para a escritora Zora Neale Hurston (1891-1960), a infância representou uma espécie de era de ouro. Ela cresceu em Eatonville,na Flórida, cidade que representava uma espécie de anomalia no Sul. Fundada como uma cidade só de negros na década de 1880, os próprios cidadãos exerciam seu governo e gestão. Suas dificuldades e sofrimentos eram responsabilidade dos próprios habitantes. Zora não sabia o que era racismo. Voluntariosa e corajosa passava boa parte do tempo sozinha, vagueando pela cidade.

Naqueles anos, tinha duas grandes paixões. Primeiro, amava os livros. Lia tudo o que lhe caía nas mãos, mas sentia atração especial por livros sobre mitologia grega, romana e nórdica. Identificava-se com os personagens mais fortes – Hércules, Ulisses, Odin. Segundo, adorava ouvir histórias dos habitantes locais, quando eles se reuniam em suas varandas para fofocar ou contar casos, muitos dos quais remontavam aos anos de escravidão. Admirava aquelas narrativas – as ricas metáforas, as lições simples. Na mente dela, os mitos gregos e os contos dos cidadãos de Eatonville se mesclavam numa única realidade – a natureza humana revelada em sua forma mais pura. Caminhando sozinha, ela dava asas à imaginação e narrava suas histórias estranhas a si mesma. No futuro, ela as poria no papel e se transformaria na Homero de Eatonville.

Mas em 1904 a morte de sua mãe daria um fim abrupto à sua era de ouro. Foi a mãe quem sempre a protegera e a resguardara do pai, que a achava estranha. Ansioso por se livrar da filha, ele a despachou para uma escola em Jacksonville. Poucos anos depois, parou de pagar as mensalidades escolares e a abandou à própria sorte. Durante cinco anos, ela errou por sucessivas casas de parentes. Trabalhou em todos os tipos de emprego, principalmente como empregada doméstica.

Após uma infância de grande aprendizado, quando parecia não haver limites para o que podia explorar, seu presente se transformara no oposto. Desgastada pelo trabalho e pela depressão, tudo ao seu redor a oprimia, a ponto de seus pensamentos se restringirem a seu próprio mundo minúsculo e triste. Em breve, seria difícil imaginar qualquer coisa além de limpar casas.

O paradoxo que ela ainda não enxergava é que a mente é essencialmente livre. A imaginação é capaz de viajar para qualquer ligar no tempo e no espaço. Ela só se manteria confinada se assim desejasse. Por mais impossível que parecesse, ela não podia desistir de seu sonho de se tornar escritora. Mas, para realiza-lo, teria que se instruir e continuar expandindo seus horizontes mentais, por todos os meios necessários. Os escritores precisam conhecer o mundo. E, assim pensando, Zora Hurston persistiu em proporcionar a si mesma dos mais notáveis processos de autoaprendizagem de que se tem notícia.

Uma vez que só conseguia trabalho como faxineira, ela procurava serviço nas casas das pessoas brancas mais ricas da cidade – onde encontrava muitos livros. Sempre que podia, pegava um livro escondida e lia trechos ao acaso, memorizando rapidamente algumas passagens para refletir sobre elas nas horas vagas. Um dia, encontrou no lixo um exemplar de “Paraíso Perdido”, de Milton. Foi como descobrir ouro. Levava-o para onde fosse e o lia repetidas vezes. Dessa maneira, sua mente não estagnou, e ela desenvolveu para si mesma um tipo estranho de educação literária.

Em 1915, conseguiu emprego como criada pessoal da prima-dona de uma companhia teatral itinerante composta exclusivamente de artistas brancos. Para a maioria das pessoas, essa seria mais uma posição subserviente, mas, para Zora, foi um presente. Quase todos os membros da trupe eram cultos. Por toda parte havia livros para ler e conversas interessantes para entreouvir. Ao observá-los com atenção, ela percebia o que se considerava sofisticação no mundo dos brancos, e como poderia encantá-los com suas histórias de Eatonville e seu conhecimento de literatura. Como parte do emprego, foi treinada para ser manicure. Mais tarde, ela usaria essa habilidade para trabalhar nas barbearias de Washington, perto do Capitólio. A clientela incluía os homens mais poderosos da época, e, com frequência, eles fofocavam entre si, como se ela não estivesse presente. Para Zora, isso era tão bom quanto ler um livro – e a experiência lhe ensinou muito sobre a natureza humana, sobre o poder e o funcionamento do mundo dos brancos.

Aos poucos, seu mundo se expandia, mas ela ainda estava sujeita a grandes limitações em relação a onde podia trabalhar, aos livros que encontrava e às pessoas q quem tinha acesso e com quem se relacionava. Estava aprendendo, mas sua mente continuava desestruturada e seus pensamentos, desorganizados. O que precisava, concluiu, era uma educação formal e da disciplina daí resultante. Aos 25 anos parecia jovem para a idade, e, assim, reduzindo em 10 anos a data de nascimento no pedido de matrícula, foi admitida em uma escola pública de ensino médio em Maryland.

Zora teria que extrair o máximo dessa oportunidade – seu futuro dependia disso. Leria muito mais livros que o exigido e trabalharia com afinco nos exercícios de redação. Faria amizade com os professores, explorando o charme que desenvolvera ao longo dos anos e cultivando os tipos de relacionamentos que se esquivavam dela no passado. Dessa maneira, poucos anos depois, ingressou na Universidade Howard, principal instituição de ensino superior para negros, onde passou a interagir com importantes figuras do mundo literário negro. Com a disciplina que desenvolvera na escola, passou a escrever contos. Até que, com a ajuda de um de seus conhecidos, conseguiu publicar um conto em um prestigioso periódico literário do Harlem. Aproveitando todas as oportunidades que apareciam, resolveu deixar Howard e se mudar para o Harlem, onde moravam todos os escritores e artistas negros importantes. Essa decisão acrescentaria outra dimensão ao mundo que ela finalmente estava explorando.

Zora passou a observar pessoas importantes –brancas e negras – e aprendeu como impressioná-las. Agora, em Nova York, ela explorou essa habilidade, encantando vários brancos afluentes do mundo das artes. Por meio de uma dessas figuras, obteve oportunidade de se matricular na Barnard College, onde poderia concluir a educação universitária. Ela seria a primeira e a única aluna negra da instituição. Sua estratégia sempre foi continuar avançando e se expandindo, por isso aceitou a oferta. Os alunos brancos de Barnard se sentiram intimidados com sua presença – seus conhecimentos em numerosas áreas superavam em muito o deles. Vários professores do departamento de antropologia se renderam ao seu fascínio e a enviaram para uma excursão pelo Sul, onde deveria reunir contos e narrativas folclóricas. Ela queria aprofundar seu conhecimento da cultura negra, com toda sua riqueza e diversidade.

Em 1932, com a depressão assolando Nova York e reduzindo suas oportunidades de emprego, ela retorna à Eatonville, Lá, poderia viver com pouco, e a atmosfera seria inspiradora. Então tomou empréstimos com os amigos e começou a escrever seu primeiro romance. De algum lugar profundo, todas as suas vivências e sua experiência de aprendizagem prolongada e multifacetada vieram à tona – as histórias da infância, os livros que havia lido, os vários insights sobre a face sombria da natureza humana, os estudos antropológicos, os diversos encontros em que prestara atenção com tanta intensidade. Esse romance “Jonah’s Gourd Vine”, narrou o relacionamento dela com os pais, mas foi, na verdade, a destilação de todas as suas vivências. Foi algo que transbordou dela em poucos meses de trabalho intenso.

O romance foi publicado no ano seguinte e se tornou um grande sucesso. Nos anos subsequentes, ela escreveu outros romances em ritmo frenético. Logo se tornou a mais famosa escritora negra de sua época e a primeira mulher negra a ganhar a vida com literatura.

A história de Zora Neale Hurston revela da forma mais crua possível a realidade da fase de aprendizagem – ninguém vai ajuda-lo ou orientá-lo. Caso seu intuito seja aprender e se preparar para a maestria, você terá que fazê-lo por conta própria e determinação. A exemplo de Zora, você precisa lutar contra todas as limitações e se empenhar o tempo todo em expandir seus horizontes. Ler livros e todo material disponível além do que lhe é exigido é sempre uma boa estratégia [...].

Com a expansão de seus horizontes, você redefinirá os limites de seu mundo aparente. Em breve, ideias e oportunidades baterão à sua porta, e sua aprendizagem naturalmente se completará".

______________________________________________________

 *Texto extraído do capítulo II, do livro "Maestria", de Robert Greene, editora Sextante- 2013 - Rio de Janeiro

Nenhum comentário:

A leitura dos clássicos ensina, treina e forma líderes profissionais

A literatura é sabidamente uma das fontes riquíssimas de aprendizado e que tem o poder de formar o ser humano para a vida em toda sua totali...